ARTIGO



Stefânia Teixeira
Psicóloga, Mestre em Saúde e Comportamento
Especialista em Neuropsicologia


INTRODUÇÃO


Os transtornos de humor aparecem como as desordens psiquiátricas mais freqüentes entre os adultos jovens.1,2 De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Transtorno Depressivo Maior (TDM) e o Transtorno Bipolar (TB) estão entre as duas das dez principais causas de incapacidade.3

Estes transtornos acarretam consequências na vida do indivíduo, de ordem psicossocial e neurocognitiva.4

Tais repercussões revelam que os episódios dos transtornos de humor estão frequentemente associados com um prejuízo generalizado em todos os domínios do funcionamento.5 Com a evolução dos estudos, os pesquisadores demonstraram que distúrbios neurológicos provocam alterações comportamentais e que transtornos psicológicos também podem causar disfunções cognitivas.6 Nos últimos vinte anos, evidências vem crescendo a cerca de que não somente durante episódios depressivos e maníacos há uma disfunção cognitiva, mas sim, que o prejuízo persiste mesmo em períodos de eutimia.7,24,25

Contudo, a etiologia das disfunções cognitivas e sua relação com a progressão da doença não são bem compreendidos, o que se concebe atualmente é que o desempenho cognitivo possa ser influenciado pela gravidade da doença.7

Neste contexto, são inúmeras as ferramentas de avaliação cognitiva disponíveis, porém, esta diversidade pode confundir o progresso na compreensão dos sintomas cognitivos, criando uma heterogeneidade nos resultados.8 Contudo, os instrumentos de avaliação da inteligência têm sido bastante utilizados, pois além deles possibilitarem a obtenção de medidas de Quociente de Inteligência, a utilização dos mesmos permite também a identificação de dificuldades cognitivas mais específicas, uma vez que os pacientes podem apresentar desempenhos diferenciais entre os subtestes.9

Nesse sentido, a importância em se delinear prejuízos cognitivos nos transtornos de humor é que, além de auxiliar na compreensão da fisiopatologia, pode-se oferecer ao paciente uma forma de acompanhamento adicional ao tratamento médico, cuja finalidade seria minimizar as interferências que as dificuldades nestes processos causam na área social e ocupacional.10 Portanto, diante do acima exposto justifica-se a realização do presente projeto a fim de investigar o desempenho cognitivo através das Escalas Wechsler de Inteligência11, e correlacionar a severidade dos sintomas dos transtornos de humor com os quatro índices fatoriais da Escala Wechsler de Inteligência – WAIS III, os quais são: Índice de Compreensão Verbal (ICV), Índice de Organização Perceptual (IOP), Índice de Memória Operacional (IMO) e Índice de Velocidade de Processamento. Além disso, este projeto tem por finalidade, verificar se o tempo de doença está associado com o pior desempenho em adultos jovens da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

MÉTODO

Este estudo é parte de um projeto maior intitulado “Fatores psicossociais e biológicos no transtorno bipolar: uma coorte populacional com jovens”, o qual teve início em 2007 com a identificação de 1762 jovens de 18 a 24 anos selecionados por conglomerados. Desde então, eles vem sendo acompanhados com avaliações periódicas.

Neste artigo 83 adultos jovens entre 21 e 30 anos de idade, provenientes do estudo de base populacional foram selecionados por conveniência. Considerou-se critérios de exclusão: apresentar sintomas psicóticos na entrevista diagnóstica e/ou retardo mental, considerado quando QI abaixo de 70 obtido no WAIS III.

Inicialmente, os jovens passaram por uma entrevista clínica diagnóstica, Mini International Neuropsychiatric Interview-Plus (MINI Plus)12 estruturada de acordo com os critérios do DSM-III-R.13 A entrevista foi realizada por psicólogos previamente treinados e as dúvidas de diagnóstico eram discutidas em reunião de equipe.

Logo após a avaliação diagnóstica foi agendada a aplicação do WAIS III e verificada a severidade dos sintomas maníacos e depressivos. Os sintomas depressivos foram mensurados pelo Beck Depression Inventory (BDI-II)14, um instrumento idealizado por Beck et al. Neste estudo utilizou-se a versão validada para o Brasil de Gomes-Oliveira (2012), em que os escores variam de 0 a 63 pontos. A Young Mania Rating Scale (YMRS)15 verificou a severidade dos sintomas maníacos em uma escala de 0 a 58 pontos. A YMRS foi validada para o Português de Portugal por Vilela.

Para avaliação do desempenho cognitivo foi utilizada a Escala Wechsler de Inteligência (WAIS-III), instrumento desenvolvido por Wechsler (1981).16 É composta de 14 subtestes e tem por objetivo fornecer três medidas de inteligência – QI Verbal, QI Execução e QI Total, além de quatro escores de Índices Fatoriais – Compreensão Verbal, Organização Perceptual, Memória Operacional e Velocidade de Processamento. Como o subteste Armar Objetos é de aplicação opcional, pois ele não entra nos escores de QI nem mesmo nos de Índices Fatoriais, optou-se por não utilizá-lo.

Os participantes foram avaliados no Ambulatório de Pesquisa e Extensão em Saúde Mental (APESM) da UCPel. Os testes foram aplicados em sessão única de aproximadamente duas horas em ambiente silencioso e adequado para avaliação cognitiva.

Este estudo obedeceu as normas da resolução 466 de 12 de dezembro de 2012 que regem os aspectos éticos de pesquisa com seres humanos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da UCPel, tendo sido protocolado e registrado pelo número 2011/46. Os esclarecimentos sobre os objetivos do estudo e informações sobre a confidencialidade dos dados foram apresentados aos participantes, e os mesmos prestaram concordância assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os adultos jovens quando diagnósticos com transtorno de humor receberam atendimento gratuito pelo APESM da UCPel.

Após a correção e revisão do WAIS III, procedeu-se a codificação dos instrumentos de coleta de dados e a dupla digitação no programa Epi-Info 6.04d com posterior checagem da consistência dos dados através do comando VALIDADE. A análise dos dados foi realizada no programa Stata 9. Para tal, os dados foram descritos por frequência absoluta (n) e frequência relativa (%) ou média (µ) e desvio padrão (±). Os índices fatoriais, QIs e sintomas apresentaram distribuição normal na curva de Gauss, em função disso os testes paramétricos ANOVA e Correlação de Pearson foram utilizados para o teste de hipóteses. Foram consideradas associações significativas quando p-valor<0,05.

RESULTADOS

A amostra deste estudo foi composta por 83 adultos jovens entre 21 e 30 nos de idade. Destes, a maioria eram mulheres (75,9%), de cor da pele branca (59,0%), com Ensino Médio completo ou Superior incompleto (55,4%) e pertencentes a Classificação Econômica C (61,4%) (Tabela 1).

Quanto as características clínicas dos participantes, os grupos diagnósticos foram distribuídos nas seguintes proporções: 43,4% sem história atual ou passada de transtornos de humor, 41,0% com depressão maior atual ou passada e 15,7% com transtorno bipolar. Dentre os adultos jovens com algum dos transtornos de humor avaliados, 45,8% estavam em episódio depressivo e 25,3% em episódio maníaco. A severidade dos sintomas foi de 13,87 ±13,61 pontos e sintomas maníacos de 5,05 ±6,94 pontos, enquanto que o tempo médio de doença foi de 6,95 ±5,10 anos (Tabela 1).

O desempenho cognitivo nos subtestes do WAIS III está exposto na Tabela 2. Na mesma é possível observar os escores ponderados dos índices fatoriais: Compreensão Verbal (28,73 ±6,87), Organização Perceptual (32,53 ±6,51), Memória Operacional (30,34 ±7,51) e Velocidade de Processamento (22,72 ±4,49), bem como os quocientes de inteligência: Verbal (97), Execução (105) e Total (101).

Quando associadas as variáveis sociodemográficas aos índices fatoriais se pode verificar que os escores do ICV, IOP e IVP foram mais baixos entre os sujeitos de cor da pele não branca, os de menor escolaridade e os de classificação econômica C quando comparados aos de classe A/B. Já o IMO foi relacionado apenas a variável escolaridade (Tabela 3).

De acordo com os dados apresentados na Figura 1, pode-se observar que não houve correlação estatisticamente significativa entre a severidade dos sintomas depressivos e os índices fatoriais do WAIS III: ICV (r -0,107; p 0,337), IOP (r -0,117; p 0,293), IMO (r -0,105; p 0,343) e IVP (r 0,061; p 0,583). O mesmo ocorreu para a severidade dos sintomas maníacos, onde ICV (r -0,042; p 0,704), IOP (R -0,160; P 0,149), IMO (r -0,038; p 0,735) e IVP (r -0,020; p 0,856) não se correlacionaram com os sintomas.

Do mesmo modo, não foi encontrada associação estatisticamente significativa entre o tempo de doença e o ICV (r -0,073; p 0,653), IOP (r -0,118; p 0.468), IMO (r -0,115; p 0,479) e IVP (r -0,148; p 0,363).

DISCUSSÃO

O objetivo do presente estudo foi o de correlacionar a severidade dos sintomas depressivos e maníacos ao desempenho cognitivo, bem como, o de comparar o desempenho cognitivo entre jovens com transtorno bipolar, depressão maior e controles populacionais. Como hipótese, este estudo refere que quanto maior a severidade dos sintomas depressivos e/ou maníacos, menor o desempenho cognitivo. E que nos indivíduos controles, o desempenho seria melhor em todas as habilidades cognitivas avaliadas pelo WAIS III. Contudo, essas hipóteses foram refutadas.

Nesta amostra foi observado pior desempenho cognitivo entre os menos escolarizados, pertencentes à classificação econômica C e não brancos. A literatura não enfatiza associações diretas com referência a cor da pele e a classificação econômica. De acordo com alguns autores17, o nível de escolaridade está diretamente associado ao desempenho em tarefas cognitivas, ou seja, quanto maior o número de anos de estudo, melhor o desempenho nos testes cognitivos. No Brasil, o nível educacional está relacionado a características socioeconômicas, o que pode auxiliar na compreensão destes achados.

Grande parte dos estudos que relacionam prejuízo cognitivo a transtornos de humor tratam de amostras ambulatoriais de adultos, com diagnóstico prévio e diferentes intervenções terapêuticas. Yates et al (2010)7 verificaram um pior desempenho no WAIS III em pacientes bipolares em episódio depressivo quando comparados a eutímicos e controles. Além disso, a severidade dos sintomas depressivos entre os adultos com transtorno bipolar foi preditora de pior performance no WAIS III. Outro estudo, com uma amostra ambulatorial em uso de lítio com idades entre 20 e 40 anos, encontrou prejuízo significativo nas funções cognitivas dos bipolares quando comparados aos controles saudáveis.18 Estudos que realizam a avaliação do QI, conforme a revisão sistemática de Vöhringer et al (2013)19, observam que pacientes com transtorno bipolar apresentam menores escores quando comparados aos controles saudáveis.

Os estudos citados anteriormente sugerem a hipótese inicial desta pesquisa, de que o prejuízo cognitivo está presente desde o primeiro episódio maníaco em indivíduos com transtorno bipolar, como um fator determinante no desfecho funcional.20,21 Em relação ao transtorno depressivo maior, a literatura relata que o déficit cognitivo, nos domínios memória e tomada de decisão, manifestam-se precocemente na doença.8 Em contrapartida, Kapczinski (2009)22 sugere que o déficit cognitivo está presente apenas em estágios mais avançados do transtorno bipolar e que o número de episódios desencadeia prejuízo cognitivo.

Os achados deste estudo refutam a hipótese de prejuízo precoce no desempenho cognitivo associado à severidade de sintomas e ao tempo de doença, bem como, ao diagnóstico prévio de transtornos de humor. Castaneda (2008)23, com uma amostra populacional de adultos jovens entre 21 e 35 anos com transtorno depressivo e controles, verificou que a memória visual e verbal de curto e longo prazo, aprendizagem, atenção, velocidade de processamento e funções executivas estavam preservadas nos jovens com depressão em relação aos controles. Nesta amostra os resultados revelaram a cognição como intacta.

Os achados do nosso estudo limitam uma interpretação de cunho neuropsicológico, uma vez que o WAIS III não se trata de um instrumento de avaliação neuropsicológica, mas sim de avaliação das habilidades intelectuais. Estudos utilizam alguns dos subtestes que compõe o WAIS III, juntamente com outros testes específicos de avaliação cognitiva. Segundo Trivedi (2013)8 há numerosas ferramentas disponíveis para a avaliação de funções cognitivas específicas, entretanto a diversidade de ferramentas utilizadas nos estudos acaba por confundir o entendimento da associação entre o desempenho cognitivo e os sintomas de alteração de humor, ocasionando uma heterogeneidade de desfechos.

Este é um dos poucos estudos que avalia adultos jovens, período do desenvolvimento considerado de risco para o surgimento de transtornos de humor. Além disso, nesta amostra, os adultos são provenientes de um estudo populacional, enquanto a maioria das pesquisas tem suas amostras contempladas por pacientes ambulatoriais que habitualmente apresentam sintomas mais severos e com comorbidades psiquiátricas. Não obstante, a amostra do presente estudo se restringe a pacientes não psicóticos.

É possível que haja um prejuízo mínimo nos domínios cognitivos de adultos jovens com transtornos de humor, no entanto a avaliação precisa ser mais sensível aos domínios neuropsicológicos e não voltada ao QI. Com isso, sugere-se novos estudos para melhor averiguar o prejuízo cognitivo em amostras jovens com diagnóstico precoce de transtorno de humor.

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